A descoberta
Foi em um dia de dezembro de 2006 que, na van que circula entre o estacionamento e a entrada principal da Câmara dos Deputados, ouvi a motorista, a dona Lenita (ou Nelita? Sinceramente, ainda não sei), tecer um comentário curioso com um outro passageiro:
— Você lembra daquele Maverick do meu irmão? Ainda tá lá…
Opa. Um nome de carro antigo sempre me chama a atenção. Se me lembro bem, contive a curiosidade até o dia seguinte, quando a encontrei de novo, e perguntei sobre o carro. O irmão da dona Lenita (?) havia morrido fazia uns dois meses e as filhas estavam preparando o inventário. Claro que não me senti nem um pouco feliz com a história, mas enfim… Elas queriam sim vender o carro, que era, segundo ela (e também segundo todas as outras pessoas que ouvi), tratado como um filho pelo seu Geraldo, Deus o tenha. Ele fora o segundo dono do Maverick branco e preto, e morria de ciúme do carro, que agora estava parado e órfão em Rubiataba, interior de Goiás, a uns 300km de Brasília.
Logo peguei o telefone de uma das herdeiras e fiz contato para saber como estava o carro, qual era o ano, o modelo. O genro do seu Geraldo, também um amante de carros antigos e dono de um Fusca 1965, foi quem me deu as informações: era um Maverick GT de 4 cilindros, ano 1977, bem cuidado e andando. Qual o preço? Bem, foi avaliado em dez mil reais. Pedi fotos e o carro parecia bem conservado. Deixei claro que estava interessado, e tratei de pesquisar sobre o carro — algo que vou abordar daqui a alguns parágrafos.
O colega de trabalho Bruno Angrisano, até mais doente por carros do que eu, achou que o preço estava ótimo. Pensei em ir pegar o carro lá no interior brabo do Goiás. A família disse que iria trazer o carro, e que iria pedir ao advogado inventariante para conseguir logo a autorização judicial para venda do veículo. Para encurtar a história, entre vários e-mails e alguns telefonemas, as coisas acabaram se enrolando MUITO mais do que o previsto — advogado enrolado, casamento de uma herdeira, gravidez de outra, enfim. Só em maio ou junho de 2007 o carro foi trazido para Brasília e regularizado para a venda. O preço acertado acabou sendo elevado para R$ 10.500 paós a vistoria e transferência para os nomes das herdeiras. Como estava em um lugar bem distante de onde moro, achei melhor só ir ver o dito cujo já quando tudo estivesse pronto, e assim poderia, numa "viagem" só, ver o carro e fechar negócio.
Então, no dia 20 de julho de 2007, fui lá conhecer o Mavecão. Roncando em marcha lenta às 9h30, encostado no meio-fio. Confesso que fiquei um pouco decepcionado ao confrontar o que me haviam dito sobre o carro e o que eu estava vendo na minha frente — mas, leia-se, um pouco. Já esperava que um carro com 30 anos não estivesse absolutamente perfeito. Já sabia que os pneus precisariam de troca. Mas o carro estava com o freio de mão quebrado, uma dificuldade imensa para pegar — certamente com a bateria descarregada pela falta de uso –, alguns pontos de ferrugem ou pintura descascada. A alavanca para abrir o capô estava duríssima. A direção, puxando um pouco para o lado. Mas, de toda forma, simpatizei com o carrão. O interior estava muito sujo, mas relativamente bem conservado. Pensei comigo: vá lá, não é pouco dinheiro, mas até que o preço está bom, e não há nada que um banho de oficina não resolva. Na página seguinte desse artigo mostro, com algumas fotos, o estado original do carro. Fechei o negócio logo e trouxe o danado pra casa.
Agora, vamos a parênteses históricos.
O renegado
O Maverick é um dos poucos carros que são vistos como lendários por um bom número de pessoas no Brasil — onde prevalece a cultura de chamar carro antigo de "lata velha" e coisas do gênero. Não vou falar da história do modelo em si aqui — quem quiser saber, pode ver o artigo na Wikipedia, que inclusive aumentei e editei recentemente.
No entanto, o modelo que é realmente cultuado é o V8, com o famoso "motor canadense" (que na verdade poderia ser também americano ou mexicano). O Maverick que foi lançado com o motor de seis cilindros do Aero-Willys foi o vilão da história do carro — ruim, fraco e beberrão. Em 1975 a Ford inaugurou uma nova fábrica de motores e substituiu o motor de 6 cilindros por um bem moderno de 4 cilindros, com comando de válvulas no cabeçote e 2,3 litros de cilindrada. Um motor bem mais econômico e potente que o anterior.
Mas exatamente para 1977 a Ford resolveu lançar a versão esportiva do Maverick, o GT, também com esse motor que já equipava as outras versões. A pintura, o acabamento, tudo era igual ao do GT equipado com motor V8 — menos o desempenho, é claro. Tratava-se de um "esportivo de mentirinha". Esse motor fez as vendas do Maverick esportivo dispararem, recorde de produção neste ano. Mas é claro que os puristas não gostaram e muita gente reclamou, apesar de na época existirem pretensos "esportivos", como o SP2 e o Puma, montados com a limitadíssima mecânica do Fusca. O "GTzinho" era capaz de chegar a 155km/h e ir de 0 a 100km/h em 17,2s, segundo a revista Quatro Rodas.
Hoje, muitos anos depois do fim da produção do Maverick em 1979, o Maverick de 4 cilindros é solemente desprezado em relação ao "Vê-Oitão", principalmente entre aqueles que gostam do carro especialmente pelo seu ar de esportivão dos anos 70. O já citado colega Bruno Angrisano mesmo chama o dito cujo de "anêmico", "raquítico", e, adepto de tuning e outras modificações de gosto duvidoso (hehehe), insiste para que eu instale um V8 no bicho. Mas eu gosto mesmo é de carro original — e, na minha opinião, os renegados, como esse Maverick GT 4, são especialmente desejáveis em suas formas mais naturais.
A missão
Bem, logo nos primeiros momentos com o carro eu já percebi que para deixar o Mavecão tinindo vou precisar de tempo e de algum dinheiro. É um projeto para alguns meses, que pretendo detalhar aqui, mais ou menos como num blog — e quem quiser contribuir com doações ou descontos será devidamente reconhecido, mencionado e creditado nestas páginas. Para fins de organização, dividi por etapas a lista de coisas a fazer:
Fase 1: O carro tem que andar direito – O mais importante de tudo é ter um mínimo de segurança. Embora o Maverick esteja andando, há algumas coisas que precisam ser reparadas com urgência, talvez até mesmo antes da vistoria de transferência dos documentos. A primeira coisa: comprar dois pneus novos, 195/70 aro 14, porque os traseiros estão em estado final. Os dianteiros estão semi-novos, e vou passá-los para a traseira — aliás, tenho que lembrar de calibrar o estepe. Parar o carro está exigindo uma certa força no pé e presumo que haja algo de errado com o sistema de hidrovácuo — por isso, é preciso verificar o sistema de freio. Aliás, o freio de mão não está funcionando e precisa ser consertado, e também é bom consertar o afogador, que está travado. Também é preciso trocar as velas e os filtros de ar e óleo, e verificar o estado do distribuidor, das correias dentada e do alternador, coisas que, com a troca de óleo do motor, do câmbio e do diferencial, são passos básicos e recomendáveis sempre que se compra qualquer carro usado. Como nos velhos tempos, é preciso limpar e regular o carburador, assim como regular a ignição, que ao que parece ainda é feita por platinado. Preciso renovar o extintor de incêndio e instalar um suporte para ele dentro do carro, porque hoje ele está é solto no porta-malas. Embora possa comprometer a originalidade, quero instalar cintos de segurança de três pontos auto-retráteis, que na época do carro eram raros: ele só vem com os cintos sub-abdominais, que não impedem ninguém de ir com a cara ao volante. O motor do limpador de pára-brisas precisa de verificação, porque está funcionando muito lentamente — pode ser sujeira e falta de lubrificação. Descobri que pode ser preciso trocar o cabo do acelerador quando, em uma voltinha já perto de casa, o acelerador ficou solto, e então notei um gato daqueles, o cabo amarrado com arame e uma arruela ao pedal… Finalmente, é bom consertar logo o medidor de combustível, cujo ponteiro está travado no meio.
Fase 2: Ordem na casa! – Alguns reparos são altamente convenientes mas não tão emergenciais. É o caso, por exemplo, da alavanca de abertura do capô solta no painel e muito dura. O principal diferencial do GT em termos de equipamentos em comparação com os outros Maverick, o conta-giros está parado, e deve ser um problema elétrico. Aliás, a fiação sob o painel tem que ser organizada, porque está parecendo um ninho de rato. Quero, assim que possível, eliminar um sistema de alarme com senha que só está enfeiando o painel, bem como um aparentemente encaixe para aparelho de som sob o painel. Os relês de seta que fazem o clic-clic precisam ser trocados ou limpos, porque estão quase inaudíveis, e as luzes indicativas das setas também precisam ser revisadas, porque elas nem sempre acendem — e como a seta não está retornando sozinha, isso é um incômodo e perigo para os outros motoristas. Aliás, incrivelmente, o carro pega sem chave e não tem trava do volante! Basta girar o local onde se coloca a chave e ele pega, e isso tem que ser modificado para evitar um roubo. A propósito, quero arranjar um volante original do GT, porque o atual é menor, atrapalha a visibilidade do painel e não tem a buzina, que, sei lá por quê, é acionada por um botão no console central. O velocímetro está bobo, com o ponteiro tremendo em torno da velocidade correta, o que revela um problema no cabo. O botão de acionamento e a lâmpada do sistema de iluminação interna precisam ser trocados, e preciso verificar o motor do ventilador, que não está funcionando. Uma cordinha safada faz as vezes do suporte de fixação da bateria, e esta talvez precise ser trocada, aparentemente por ter ficado o carro muito tempo parado.
Fase 3: Agora sim a perfumaria! – Talvez seja essa a fase mais divertida.. e também mais cara. É preciso eliminar e pintar os pontos de ferrugem ou descascados. Há alguns trincados na lataria e é preciso fazer funilaria do bico do capô por dentro, do assoalho do porta-malas e de alguns pontos do cofre do motor. Inclusive o próprio motor precisa de pintura, pois sua tinta azul está bem corroída. É preciso ainda repintar as faixas pretas do capô e das laterais, e corrigir o estranhamente absurdo adesivo (ou pintura) nas laterais que diz "3.2 OHC", quando deveria dizer "2.3 OHC". Aliás, o capô não parece estar perfeitamente alinhado com os pára-lamas, o que parece impedir que ele feche corretamente. Acredito que um polimento geral deve reavivar a pintura branca original. Por fim, trocar a bola de câmbio e o revestimento dos bancos, por um mais duro, de plástico preto, como o original, ou de corvim ou couro preto, quem sabe.
{mospagebreak title=O estado original}
Não foi muito difícil perceber que o seu Geraldo até podia mesmo ter ciúme e carinho de pai com o Maverick, mas no fundo não gostava muito de gastar dinheiro com ele. Em seu estado original, o carro até estava relativamente bem conservado, bastante original e com ótima estrutura para um carro de 30 anos, mas veio com a pintura mostrando marcas do tempo e a mecânica, bem, com alguns gatos e problemas preocupantes. As poucas fotos que a minha câmera digital já idosa (e beberrona de pilhas) me permitiu fazer podem exemplificar o que estou dizendo. Seria legal sim poder clicar nas fotos e vê-las em tamanho maior, mas o sistema de gerenciamento do site, nesta versão que uso, ainda não permite isso. Quando for possível, farei a mudança.
Podem falar o que quiserem da tinta branca em carros, mas ela é a que menos mostra arranhões e queimaduras de sol, entre outras vantagens. É o inverso da tinta preta — que, como eu já sabia, no capô do Mavecão estava manchada e com falhas. As faixas pretas eram adotadas pela Ford nos seus modelos esportivos no Brasil desde o Corcel GT. Já era meio brega na época, mas hoje dá um grande "ar de anos 70" no carango. As listas pretas que circundam essa área escura estão desgastadas, e a pintura também preta do interior das falsas tomadas de ar está muito desbotada. | |
Ao que parece, as listas pretas das laterais já foram retocadas nesse carro. Inclusive, parecem ter sido pintadas na carroceria — já li em algum lugar que originalmente elas eram reles adesivos. Um sinal bem evidente disso é a inscrição "Maverick GT" com letras diferentes das originais e até mal desenhadas. Mas não vou mexer nisso — bom, pelo menos isso não está entre as minhas prioridades. Nas portas essa pintura preta também mostra algumas manchas do tempo. | |
Outro fortíssimo indício de repintura das faixas na lateral: a inscrição errada da cilindrada do motor, que é 2.3, e não 3.2. Note, ainda, os logotipos do V8 instalados aí só pra "fazer bonito". Acho que vou tirar eles daí. | |
O motor pintado, como eram os motores do Opala e outros carros até os anos 70, não apresenta sinais de vazamentos, mas tem pontos de corrosão na tampa do cabeçote e na caixa do filtro de ar. Veio bastante desregulado, com baixa potência, "espirrando" e engasgando, exigindo pé no fundo pra uma reles saída em primeira marcha. A causa pode ser acúmulo de sujeira por ter ficado muito tempo parado, além de uma aparente desregulagem no avanço ou "ponto" da ignição. A bateria está amarrada com uma corda, pois o apoio superior do suporte dela parece não existir mais. No cofre do motor, há pontos em que a pintura está descascada. Na dobradiça do capô que fica no pára-lamas esquerdo há um ponto de solda — cicatriz de uma batida ou simplesmente da própria soltura da dobradiça. | |
O lugar onde a ferrugem atacou mais gravemente este Maverick foi a parte de dentro do capô, bem na ponta, não por acaso perto de onde fica a tampa do radiador. Aqui, imagino, só lixando e enchendo de massa plástica mesmo. | |
A pintura se desgastou e abriu caminho para uma leve oxidação na porta do motorista, exatamente no ponto onde o motorista costuma apoiar o braço. Mas note que o forro, o suporte de braço e a maçaneta estão bem conservados e aparentemente são originais. As janelas sobem e descem com facilidade. As duas portas são pesadas e exigem força para abrir ou fechar, principalmente a do lado do passageiro, que parece estar levemente desalinhada e "pegando" em algum lugar. | |
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Esse é o interior e um pouco do painel do Maverick. Note o volante e o estofamento diferentes dos originais (da outra foto, tirada de uma revista Quatro Rodas de 1977). Um bocado de poeira, sim, mas a almofada do painel está em ótimo estado, os logotipos e instrumentos estão todos aí, a pintura do painel está muito boa, o relógio funciona e os cromadinhos de plástico do console estão inteiros, apesar de estarem descascando em alguns pontos (espero que haja algum tipo de recuperação possível e barata para eles). O câmbio é estranho: essa bola não é a original, parece ser colada (e não simplesmente rosqueada), e a alavanca foi bastante encurtada, a ponto de deixar o câmbio duro e seco como de um carro de corridas, e de às vezes me obrigar a tirar as costas do banco para passar as marchas. A coifa da alavanca também parece molenga demais. O que incomoda deveras no painel é um estranho sistema de alarme com senha, ao lado do volante, que sequer funciona. O rádio dessa foto é só uma tampa, na verdade. |
Em detalhe, o ninho de cobra que a fiação elétrica faz embaixo do painel, piorada pelo sistema de alarme e por uma espécie de encaixe para um aparelho de som. Os relés Motorcraft redondinhos de aluminio, aparentemente originais, fazem o clic-clic da seta, mas o som está muito baixo, quase inaudível. | |
O porta-malas não está forrado e está bastante sujo — além de um possível passado de trabalhador, também há um pequeno furo na caixa do pára-lamas traseiro esquerdo. Ele parece um pouco amassado para baixo no lado direito e a pintura está toda craquelenta, além de ter uns pontos sem tinta e outros com ferrugem, principalmente junto aos pára-lamas. Note que a roda do estepe é de Opala. Para não dizer que não falei de flores: um fiscal do Detran que fez a vistoria me informou que as placas de borracha horrivelmente colocadas por baixo da tinta do porta-malas são originais da época. | |
Detesto adesivos. Ainda mais quando são desses ridículos. Esse dançou logo no segundo dia. Outro, aquele maldito "97" que o Detran inventou naquele ano, também dançou. Mas ainda não consegui tirar um do vidro traseiro, que está muito colado. | |
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O carro veio com um aerofólio dianteiro, que na minha opinião é a chamada "piãozice" e desfigura aquele belo "perfil de tubarão" que o Maverick tem. Tirei logo. Por baixo, como revela a outra foto, há um pouco de corrosão, muita sujeira, e a parte de baixo do painel frontal foi — acidental ou propositalmente — levemente empurrada para baixo, ficando mais inclinada do que o original. Isso será resolvido na fase de lanternagem. Perceba que a ponta do capô não está fechando direito: os pára-lamas parecem estar mais para dentro do carro do que deveriam, e na ponta eles e o capô se sobrepõem. |