Foi iniciativa do Poder Executivo, mais precisamente do Ministério da Justiça sob a batuta do petista gaúcho Tarso Genro, a idéia de proibir completamente a venda de bebidas alcoólicas em comércios de beira de estrada. A medida provisória com tal propósito causou tremendo rebuliço e uma repercussão tamanha que o próprio governo chegou a voltar atrás na idéia.
Mas era tarde: a medida provisória já havia sido publicada, já estava tramitando na Câmara dos Deputados, e, por nomeação de algum gênio — naquelas formas misteriosas do Congresso que ninguém sabe explicar — a dita medida foi ser relatada pelo deputado Hugo Leal, do PSC-RJ, advogado, membro ativo da crescente bancada evangélica da Câmara e integrante da Frente Parlamentar do Trânsito Seguro. Aí, já viu: além da proibição da venda, o deputado enfiou no meio do texto a redução do teor alcoólico permitido no sangue do motorista, de 0,6dg/l para 0,2dg/l. O que, na prática, significa zero, bolinha, rosca.
A medida, já convertida para projeto de lei, foi para o Senado, sofreu mudanças, mas voltou para as mãos do mesmo relator, e, no meio da confusão sobre a CSS (reencarnação da CPMF), a base governista derrubou as mudanças feitas no texto pelo Senado, e aprovou o texto que o deputado Leal já havia emplacado. Talvez temendo alguma rebelião na base governista em momento delicado — tanto que a CSS só passou pela Câmara com dois votos além do estritamente necessário –, Lula nem pestanejou e passou a caneta no absurdo.
Absurdo, sim, porque absolutamente tudo nessa lei é torto de nascença. Em vez de ser debatida apropriadamente na forma de um projeto de lei, a iniciativa surgiu como mais uma medida provisória, mecanismo torpe e desnecessário que o governo usa e abusa quando quer resolver tudo sozinho e sem ouvir ninguém. E aí mesmo já está outro problema: em uma democracia decente, é o Poder Legislativo que faz as leis, não o Poder Executivo. Mas é de se compreender o interesse do ministério em aparecer como o salvador do trânsito brasileiro. Pouco depois do Carnaval, quando o número de acidentes se tornou alarmante e surgiu a tal medida provisória, comentava-se nos bastidores do Plenário que o ministro Tarso Genro enfrentava uma espécie de competição com o então vice-líder do governo na Câmara, o também gaúcho deputado Beto Albuquerque. Diz-se que, em suas bases eleitorais no Rio Grande do Sul, os dois vinham disputando a tapas o posto de “O Maior Herói e Arauto do Trânsito Seguro”. Obviamente, tal motivação política é também mais um vício de origem na nova lei seca.
Não acabou aí. Resta-me a absoluta certeza de que não foi por acaso que a tal medida provisória foi parar nas mãos de um deputado da bancada evangélica. Por si só isso já torna pouco surpreendente o radicalismo, que no caso é abstêmio mas também se revela em formas diversas e até cínicas em outras votações polëmicas do Congresso. Foi mais um vício da matéria e, ainda falando disso, a sua inclusão em pauta em meio ao turbilhão político causado pela votação da CSS só podia causar uma decisão atabalhoada e, certamente, movida por interesses outros que o mero aumento da segurança no trânsito. Este problema é o mesmo que motivou a sanção presidencial do, convencionamos chamar, absurdo legal.
Agora, graças à irresponsabilidade de um governo sob o manto discursal da segurança pública, estão aí taxados como criminosos todos os brasileiros que, durante uma feijoada de domingo com a família, tomarem uma mísera cerveja ou aquela simples e tradicional dosezinha de cachaça para abrir o apetite. Ou aquele romântico casalzinho jovem que, em uma noite especial, sair para um fondue à luz de velas e pedir um vinho para acompanhar. Ou até mesmo o executivo que, após um almoço de negócios, cair na besteira de pedir como sobremesa um reles creme de papaia com licor de cassis. Alguém vai dizer que, nesses casos, as pessoas podem e devem usar outros meios de transporte. Ah, tá bom. Vivemos na Suécia? Ou em Nova York, onde existe um táxi para cada cidadão? Neguinho, aqui é o Brasil. Táxi à noite é MUITO caro para quase toda a população, e, principalmente, perigoso. Metrô e ônibus, então, são passaportes para o inferno, e isso quando não páram de funcionar após certo horário e, mesmo assim, se é que existe linha de metrô ou ônibus no trajeto para onde se deseja ir — na minha querida Brasília, por exemplo, o transporte público é no mínimo ridículo, não passa a menos de 500 metros de qualquer barzinho decente, e passa ainda mais longe em grande parte das áreas residenciais. Desde JK o Brasil foi planejado e alimentado para ser um país sobre rodas e farto de automóveis.
Já anuncia orgulhoso o governo que o número de acidentes de trânsito entrou em queda livre. E, com esse forte argumento, esconde os principais motivos de preocupação que a tal lei seca deveria nos fazer pensar. O primeiro deles é que, vale a pena dizer de novo, o Poder Executivo assumiu o papel que a Constituição atribui ao Legislativo, e assim simplesmente deixou de lado sua própria obrigação constitucional, que seria a de fiscalizar o trânsito e as rodovias. É um grande negócio, sem dúvida, porque escrever uma proposta de lei num papel e aprová-la no Congresso é infinitamente mais barato e fácil do que equipar as polícias, concursar e contratar mais agentes e fiscais, coisas que há muito tempo são mais que urgentes no Brasil.
Em vez de criar uma lei razoável com fiscalização forte, que pega e pune todos (ou pelo menos vários) que cometem verdadeiros abusos, o nosso Poder Executivo prefere manter basicamente a mesma estrutura de fiscalização de sempre — fraca, mal-equipada, rarefeita, quando não corrupta — e criar uma proibição total e irrestrita que vai acabar (para não dizer outro termo) com meia dúzia de azarados que forem pegos e pendurados em praça pública como exemplos de o que acontece se alguém mais for desobediente — R$ 955 de multa e suspensão da carteira de motorista por um ano. Neste instante, para exibir a nova lei, a fiscalização foi reforçada. Mas, como já vimos antes, não será surpresa alguma se dentro de dois ou três meses os efetivos policiais voltarem a desaparecer das ruas, e a realidade brasileira mais uma vez tornar a lei praticamente uma letra morta — a não ser, é claro, com os gatos pingados que forem pegos.
Mas a mais grave preocupação que devemos ter com esse ato é a pachorra com que “autoridades” prejulgam as pessoas por baixo, nivelando todos como criminosos e tratando o cidadão de bem como um idiota incapaz de usar o próprio livre-arbítrio e a própria responsabilidade. O casalzinho, o executivo e o pai de família citados acima passam a ser tratados como aqueles animais que de vez em quando são vistos atropelando cones em uma barreira policial e, abordados pelos guardas, descem do carro cambaleando, xingando até a quarta geração da família do guarda e tentando dar uma carteirada nojenta. Isso quando não sobem com o carro em uma parada de ônibus lotada de gente inocente. Esses sim são os irresponsáveis, os que não medem os próprios atos. Mas o governante não quer ter o trabalho de ir atrás destes. Então, é muito mais fácil generalizar, e punir não o abuso, mas o ato qualquer, medido ou não. Esta linha de raciocínio é um atentado à democracia da nação e, mais ainda, à liberdade do cidadão. É a mesma linha de raciocínio que já proibiu totalmente o fumo em lugares como boates, no lugar da efetiva criação de áreas fisicamente separadas para fumantes e não-fumantes; e que em breve deve proibir o funcionamento das lanchonetes de fast-food e churrascarias, por conta dos abusos que levam a problemas sérios à saúde. Se levarmos o raciocínio para o campo das manifestações de cada pessoa, é a mesma generalização que caracteriza a censura geral, que todo brasileiro conhece bem e repudia.
Não é sem motivo que a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes e outras entidades estão buscando questionar a nova lei seca na Justiça. O cidadão também deveria acordar e protestar. O governo pode e deveria usar outras formas de tirar das ruas quem realmente bebe e comete irresponsabilidades no trânsito. Basta fiscalizar corretamente, como lhe caberia fazer — o que, inclusive, evitaria também os acidentes de quem nem precisa beber para fazer barbeiragens (e são muitos). Atribuindo a redução do número de desastres à sua lei generalizante, desmedida, anti-democrática e autoritária, o governo admite e comemora sua própria incompetência de, efetivamente, governar.