Cordel Digital

Certificado de menção honrosa a Fabricio Rocha no Prêmio Unisys de Jornalismo de 2003 pela série "Cordel Digital"
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Entre dezembro de 2002 e janeiro de 2003 escrevi o “Cordel Digital”, em três edições da coluna Micros e Cia que eu compartilhava com o denodado Felipe Campbell no caderno de Informática do Correio Braziliense (à época chamado de “eTudo”). Ainda me orgulho do texto e da menção honrosa que ele me rendeu no Prêmio Unisys de Jornalismo de 2003, cujo tema era “A Tecnologia da Informação na Democratização do Ensino”. Só não me orgulho é de sentir que o texto ainda parece atual, quase 14 anos depois de publicado e agora transcrito aqui.

CAPÍTULO 1 – Chega o futuro

10/12/2002

Surgidos donde vem o vento,
Fazendo um grande carnaval,
Chegaram um dia a Aratuba
Uns moços lá da capital
Fazendo uns discurso bonito,
Sobre inclusão digital.

O povo tava que assuntava
O que era a conversa de agora.
Os moços mal tinham assentado,
E todo mundo esperava a hora
De ver o que tinha na caixa
Que os moços trouxeram de fora.

Mas ninguém entendia o que era
O assunto de tal discussão.
Digital tem na identidade,
Mas o que era a tal da inclusão?
Uma coisa de fazer chover?
Talvez algo de pôr no feijão?

A Dona Bené, professora,
Ouviu do prefeito a promessa
De que aquilo que os moços traziam
Pra escola ia ser bom à beça.
Que as crianças Vão precisar disso,
E Aratuba vai ter que entrar nessa.

Foi então, num domingo de sol,
Na praça em frente ao convento,
Que os moços montaram barraca,
Com uma placa a dizer “Telecentro”.
Uma máquina de escrever estranha,
Uma tevê e um caixote cinzento.

Os moços, suando em cascata,
Diziam: “Chegou o progresso!
Aratuba é plugada na rede.”
Mas pra gente era muito complexo:
Rede não é pra dormir?
E o que tem isso aí de sucesso?

Assim como vieram partiram
Os moços lá da capital.
Fizeram o que lhes foi mandado:
Aratuba já é digital.
Ninguém sabe como funciona,
Mas se pode dizer mundial.

 

CAPÍTULO 2

31/12/2002

Quase perdida no mapa do Brasil, a simbólica Aratuba foi contemplada por um programa governamental — algo inédito — de informatização dos municípios. Quando chegou, o computador causou grande curiosidade, mas ninguém lembrou que aquela gente simples tinha outros problemas mais difíceis e sequer sabia como ligar o micro….

Logo o computador da cidade
Foi pra escola, a que mais lhe faz jus.
O prefeito fez belo discurso,
Mas a escola sequer tinha luz!
Foi puxado um tio da praça,
Do holofote que ilumina a cruz.

As crianças olhavam contentes
Os ícones vivos na tela.
Mas a dona Bené, professora,
Dando aula sob a luz de vela,
Perguntava: por que essa coisa,
Sem didática feita pra ela?

Foi-se então para a capital,
Para sobre o assunto entender.
Os colegas disseram “é normal,
Pouco temos também a fazer:
Dão o micro sem material,
Sem programas que façam aprender”.

Esforçou-se a Dona Bené
Em saber sobre a tal da Internet
E levar pra escola em Aratuba
Algo para ensinar aos pivetes.
Que olhavam o micro parado,
Sem saberem o que é um disquete.

Pelo menos se fez algo útil
Com o computador da cidade.
As pesquisas da escola aumentaram,
Os alunos brincavam a vontade.
Navegando nos links do mundo.
Desfrutando a nova liberdade.

O padeiro Edmilson, contente
Com o fllho tão interessado,
Viu no micro um belo presente,
E chamou a professora de lado:
“Se eu comprar um igual ao da escola,
O programa pode ser copiado?”

Dona Bené ligou pra cidade,
E disseram que a lei proibia:
“O programa é dos americanos,
Copia-lo é pirataria”.
“Mas que coisa!”, falou Edmilson.
“Não vai dar pra treinar todo dia?”

Pobre Dona Bené, pensativa,
Vislumbrando o tal Brasil moderno.
Onde se informatiza uma escola
Pra eleger alguns homens de temo.
Sem um plano ou um programa escolar,
Sem que acabe o atraso eterno.

 

CAPÍTULO 3

14/01/2003

O programa de inclusão digital que levou o computador a nossa pequena Aratuba irritou a professora da escola pública, a Dona Bené: era mais um instrumento de publicidade do que um projeto sério e pensado para os alunos. Mas o interesse e a esperteza fez com que as crianças aprendessem sozinhas a usar a máquina, e se preparassem para uma nova época que viria…

Veio da capital a notícia
De que um novo tempo nasceu.
Foi o brilho da estrela no alto,
Esperança do povo plebeu;
Mas promessas de vida e trabalho,
Aratuba já viu e não esqueceu.

Pelo computador da escola,
As crianças puderam então ler
Que havia, além do governo,
Gente mais trabalhando em fazer
A Internet e os micros chegarem
Onde o progresso nem quis saber.

Decidiram, então, os alunos
Depois d’aula na praça sentar
E escrever uma carta de ideias
Para ao novo ministro mandar.
Debateram o que poderia
Ter na nova Internet escolar.

E quem mais poderia supor
Que em tão pouco tempo na classe
O micro instalado na escola
Tão espertos meninos formasse?
Pois podiam, brincando, apontar
Tudo aquilo e o que mais precisasse:

— É preciso que todo estudante
Tenha alguém entendido por perto
Pra explicar como que funciona.
E não fique sem saber ao certo
Pra que serve um micro na escola,
logado no meio do deserto.

—Todo mundo deve ter e-mail,
E poder um documento tirar
Pela rede, para não ter mais
Que até a capital viajar
Pra pegar um papel carimbado
E então um emprego arranjar.

— É preciso que o professor
Faça cursos pra saber usar
A informática como ferramenta,
E não outra matéria escolar:
poís problemas já temos aos montes,
E na roça não dá pra estudar.

— Mas se um dia, se nosso Deus quiser,
Nossos micros pudermos comprar,
Os programas que usamos na escola
Nós queremos poder copiar:
não queremos programa pirata,
Mas também não podemos pagar.

E assim os meninos fecharam
Sua carta de tantos pedidos.
E mandaram, cheios de esperança
Que Aratuba e seu povo esquecido
Tenham no novo tempo que nasce
O direito de serem ouvidos.

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