A moda da retroinformática

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Resolvi escrever o primeiro artigo de 2010 no meu site sobre o que deliberadamente decidi chamar de “retroinformática” — uma adaptação livre do inglês “retrocomputing” que é usado internacionalmente. Os computadores de 8 bits dos anos 70 e 80 são atualmente admirados e valorizados, e ainda hoje contam com usuários, fãs e programadores que os mantêm vivos e funcionando em todo o mundo.

Em 2008 alguns blogs e sites especializados em informática anunciaram com certo alarde que um grupo de pesquisadores e voluntários estariam planejando a criação de um computador para crianças de países como Índia e China, ao fantástico custo aproximado de US$ 12. Isso mesmo, doze dólares. Alguns desses sites, mais atentos, observaram que o tal computador seria baseado no velho e bom Nintendinho, o popularíssimo videogame dos anos 80 e 90, que apesar de suas grandes limitações — por exemplo, um reles processador de 8 bits igual aos usados nos primeiros computadores pessoais de trinta anos atrás — seria uma plataforma ainda satisfatória para muitas aplicações.

Por fim, quem realmente visitou o site do Playpower.org e leu atentamente as propostas dos especialistas, viu que não haveria novo computador coisa nenhuma: o grupo apenas propõe a criação voluntária de novos jogos e programas educativos para os diversos clones do Famicom (a versão japonesa do Nintendinho) como os que já são largamente fabricados e vendidos por camelôs e lojinhas de quinquilharias; especialmente para os clones que são equipados com teclado e mouse. A patente da Nintendo sobre o seu videogame expirou e, hoje, os videogames copiados do Famicom são ainda muito vendidos e produzidos em grande escala, principalmente na China, o que joga os custos lá pra baixo.

A altruística missão do Playpower é nobre e válida, mas pessoalmente acho que não são tantas assim as crianças que, em tempo de Internet e de Rock Band, se interessariam num videogame-computador com gráficos e sons meio antiquados e sem acesso à rede mundial; e que na verdade o projeto é muito mais interessante para pessoas que, como eu, viveram a era dos computadores de 8  bits e seus obrigatórios programas em linguagem Basic; ou até garotos mais novos que acham interessante o desafio de programação e funcionamento que estão representados nesses computadores e videogames de outrora — com capacidades que hoje são superadas até por alguns brinquedos, relógios de pulso e eletrodomésticos.

Minha paixão pelos computadores surgiu por volta de 1989, quando ganhei de uma vizinha uma coleção quase completa de uns fascículos da Editora Globo traduzidos de uma publicação inglesa similar. Ainda tenho essas revistas e até hoje não encontrei nenhuma outra publicação que seja melhor introdução à informática. No fim de 1990, ganhei de Natal e aniversário o meu primeiro computador — um Gradiente Expert DDPlus, que também mantenho até hoje.

Não eram tempos fáceis. Na época, não tinha nada disso de Internet, eu não tinha modem nem acesso às incipientes BBSs de então, livros de informática eram difíceis de encontrar (e mesmo assim, quando os encontrava, eram muito mais caros do que minha eventual mesada permitia). Havia uma revista especializada em MSX, a saudosa CPU, mas ela era basicamente voltada para os usuários já avançados de MSX, raramente trazia uma listagem de programa interessante, e se dedicava demais a quem já tinha o computador transformado para MSX2 ou MSX 2+, o que era coisa de outro planeta para mim na época. E embora o padrão MSX do Expert fosse relativamente popular no Brasil, só eu tinha um DD Plus, que usava discos de 3 1/2 polegadas, e por isso não tinha como copiar programas e jogos dos meus amigos. Para piorar a situação, a documentação que vinha com o Expert DD Plus era muito pior do que a do modelo anterior do Expert, que vinha com um completo guia de comandos do MSX Basic e um tutorial que ensinava o básico da programação no “micro”, como chamávamos na época. Peguei esse último livro emprestado de um vizinho que tinha o Expert original, e tirei uma cópia Xerox com as páginas toscamente coladas para ficarem “frente e verso”!

Essa cópia ridícula do manual, a coleção de fascículos (que só tinha programas para as linhas Apple, TRS-80 e Sinclair) e os manuais insatisfatórios do DD Plus eram toda a referência que eu tinha para fuçar naquela máquina. Obviamente não consegui explorar quase nada dela. Escrevia num caderno uns programinhas em Basic para fazer desenhos na tela. Um ou outro programa que fazia perguntas e calculava alguma coisa, nada sofisticado. Eventualmente, conseguia adaptar para o Basic do MSX algum dos programas que encontrava nas outras revistas. E só. Sempre fiquei frustrado por não saber nada de linguagem de máquina, não entender o que eram todos aqueles números hexadecimais nas linhas “DATA” ou nos comandos “POKE”, e por isso nunca conseguir fazer algo mais sofisticado ou interessante.

Poucos anos depois fiz um cursinho básico de lingauagem C, os PCs com Windows começaram a se popularizar rapidamente e eu também ganhei um, mas programar um PC parecia muito mais difícil e frustrante, e por isso deixei a programação de lado por muito tempo. Certamente, a auto-decepção por não ter conseguido tirar tudo que poderia do velho MSX é algo que ainda hoje me desafia diante desses computadores ultrapassados e de iniciativas como o Playpower.

Mas por quê mexer com 8 bits?

Bem, eu tenho meus motivos pessoais para ainda ser interessado nos micros antigos, e com certeza também têm seus motivos os vários entusiastas de computadores como Apple II, Commodore 64, Atari, Amiga e MSX. Existem inúmeros sites e fórums sobre retroinformática na internet. Muitos desses entusiastas, inclusive, criam seus próprios computadores de 8 bits, usando processadores antigos e/ou novos, com base em kits vendidos por lojas de eletrônica, ou mesmo criados a partir do zero.

Qual a graça que tanta gente vê nesses computadores de memória limitada (normalmente a 64 kilobytes, menos do que muitas das fotos e e-mails que vemos todos os dias), raramente e sempre precariamente conectáveis à internet, sem grandes recursos e com nenhuma perspectiva comercial na atualidade?

Era interessante a diversidade da época. Não havia um padrão dominante como o PC de alguns anos depois: havia vários modelos de computadores completamente diferentes, cada fabricante apostando suas fichas em certas características técnicas que seriam vantagens em relação aos demais. Claro que a maioria dos fabricantes copiava um ou mais dos modelos bem sucedidos já existentes, mas havia quatro grandes “famílias” de micros — Apple II, TRS-80, Sinclair, MSX — e ainda os menos conhecidos internacionalmente ou jamais clonados, como os Commodore VIC-20 e 64, os Atari 400 e 800, os Amstrad CPC e tantos outros. Havia três processadores que dominavam o mercado — o 6502, o Z80 e o Motorola 6809 — e mesmo os computadores que usavam processadores iguais eram pouco ou nada compatíveis uns com os outros. Eram acaloradas e animadoras as disputas entre os usuários de diferentes plataformas sobre qual seria a melhor ou mais avançada; era algo similar ao que ocorria quando a indústria automobilística apresentava carros com motor refrigerado a ar ou a água, tração traseira ou dianteira, dois ou quatro tempos. Não havia a pasteurização de hoje, em que tanto computadores quanto carros são tecnicamente quase nada diferentes uns em relação aos outros.

Programar os micros de 8 bits com todas as suas limitações era (e ainda é) relativamente fácil e extremamente desafiador, diante das limitações impostas. Havia umas poucas funções embutidas no computador (como mostrar um caractere na tela) além do quase onipresente interpretador de linguagem Basic. Era praticamente obrigatório aprender um pouquinho de programação para usar um sistema, o que ajudou muitos garotos a seguir carreira na computação. O programador deveria controlar completamente todo o computador, todos os processadores, e usar linguagem Assembly ou até mesmo a pura e rasa linguagem de máquina para economizar espaço e obter um desempenho aceitável. Cada ínfimo byte era importante, e até hoje é surpreendente o que alguns programadores conseguiam — para mim, o maior exemplo de programação eficiente de todos os tempos é o sistema operacional GEOS, que deu ao Commodore 64 e ao Apple II uma interface gráfica parecida com a do muito mais avançado Macintosh. Muitos jogos criados naquela época, e alguns criados atualmente para esses computadores por seus entusiastas, são incrivelmente divertidos e viciantes. E a simplicidade da eletrônica usada até então permitia que quem tivesse mais conhecimentos pudesse criar em casa seus próprios consertos e acessórios para essas máquinas, algo quase impossível para os sistemas atuais.

Não é à toa que, em plena era de internet e banda larga, vídeos de alta definição no YouTube, gigabytes baratos a perder de vista, existem tantos emuladores de micros e videogames antigos. Eles não apenas permitem que os ex-usuários matem saudade dos programas e do Basic das máquinas da infância, como permitem que muita gente mais nova conheça um pouco dessa era romântica da computação pessoal e se divirta com os programas e jogos da época. Também não é por acaso que ter um velho Atari é uma atração em festas em casa, e que sejam encontrados micros antigos com preços até elevados em sites de compra e venda como MercadoLivre e eBay. Nem é caso fortuito que, hoje, ainda haja iniciativas como Playpower provando que as velhas e ultrapassadas máquinas ainda têm muito potencial e utilidade a oferecer. Aliás, velho e ultrapassado é a pinóia — agora meu velho Expert é vintage. Tem algo mais na moda do que isso??

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